segunda-feira, 14 de março de 2016

Quanto custa preservar a mata atlântica

Juntas, ecologia e economia mostram que menos de 0,01% do PIB anual do Brasil pode ser suficiente para preservar funcionalidades essenciais do ecossistema
MARIA GUIMARÃES | Edição Online 15:00 28 de agosto de 2014

 
© THOMAS PÜTTKER
A cuíca (Micoureus paraguayanus) é um marsupial que tira proveito do desmatamento
A cuíca Micoureus paraguayanus é um marsupial que tira proveito do desmatamento
Pagar taxas para que proprietários em zonas rurais preservem uma porção maior de terras do que é obrigatório por lei parece ser uma forma viável de evitar a perda de serviços prestados pela mata atlântica, como impedir a disseminação de pragas e garantir a qualidade das águas. É o que indica um estudo publicado na edição desta semana da revista Science, liderado pela bióloga brasileira Cristina Banks-Leite, professora do Imperial College de Londres, na Inglaterra, e professora visitante na Universidade de São Paulo (USP).
“O pagamento por serviços ambientais está em andamento no Brasil”, conta a pesquisadora. Mas isso costuma acontecer em escala mais local, por iniciativa de organizações não governamentais (ONGs) e de municípios. Sua proposta é ampliar essa iniciativa para a escala nacional, em que o governo faria um programa para selecionar áreas prioritárias e propor pagamentos aos proprietários. Não custaria caro: de acordo com o estudo, o investimento para se atingir 30% de cobertura vegetal em 37 mil áreas prioritárias ao longo de toda a mata atlântica custaria, por ano, cerca de 445 milhões de reais. Isso representa menos de 0,01% do PIB anual brasileiro, ou 6,5% do que é pago em subsídios agrícolas. Segundo os pesquisadores, a área extra alocada à floresta causaria um prejuízo pequeno à produtividade (0,61% do PIB agrícola produzido nesses municípios) e nem afetaria, de fato, os ganhos dos agricultores, já que estariam recebendo pagamento por seu empenho na manutenção do ecossistema, com o benefício de assegurar a preservação desse hotspot de biodiversidade em que muitas espécies estão em risco de extinção.
© THAIS H. CONDEZ
Recém-descrito: o sapinho Brachycephalus guarani mede menos de 2 milímetros
Recém-descrito: o sapinho Brachycephalus guarani mede menos de 2 centímetros
Os números partem de projetos de longo prazo dos biólogos Jean Paul Metzger e Renata Pardini, da USP, que avaliaram os efeitos da fragmentação da mata atlântica paulista na diversidade de anfíbios, aves e mamíferos. O estudo de uma das áreas foi o doutorado de Cristina, concluído em 2009 sob orientação de Metzger. Os resultados indicam que é preciso preservar pelo menos 30% da floresta para que seja mantida a integridade das comunidades de vertebrados essenciais ao funcionamento do ecossistema. O Código Florestal exige que a vegetação nativa seja mantida em 20% de cada propriedade, de maneira que seria necessário ampliar essa área sem utilização agropecuária por meio de pagamentos. Segundo Cristina, uma das perguntas iniciais do projeto era avaliar o mínimo de mata necessária para manter a floresta. “Até agora ninguém tinha conseguido um resultado consistente”, afirma a pesquisadora. Para se aprofundar nas análises ecológicas, ela sentiu falta de mais conhecimento matemático e está cursando uma graduação à distância na área, pela Open University. Com essa visão, ela trouxe o olhar econômico para o artigo publicado na Science.
© THOMAS PÜTTKER
Exclusivo da mata atlântica, o rato-de-espinho Phyllomys nigrispinus se alimenta de folhas
Exclusivo da mata atlântica, o rato-de-espinhoPhyllomys nigrispinus se alimenta de folhas
A partir dos dados sobre a fauna de vertebrados residente no estado de São Paulo, os pesquisadores ampliaram a estimativa para a mata atlântica inteira seguindo princípios ancorados na realidade. “Não podemos delimitar uma porção da avenida Paulista e dizer que ali precisa ser floresta”, brinca Cristina. A piada é séria, afinal, as maiores cidades brasileiras foram erguidas em plena mata atlântica. As 37 mil áreas prioritárias selecionadas pelo grupo são, na verdade, propriedades rurais em que os donos já seguem a lei e mantêm 20% da área preservada. “Já há uma certa quantidade de animais e plantas vivendo ali, de maneira que a recuperação seria mais simples.” De acordo com a conta feita pelo grupo, seria necessário restaurar 424 mil hectares para chegar ao objetivo de 30% de cobertura nessas áreas. A proporção do PIB que estimam ser o custo, menos de 0,01%, vale só para os primeiros três anos, quando parte da floresta precisaria passar por medidas de recuperação ativa. Depois disso, o custo deveria cair para 0,0026% do PIB.
© SANDRO VON MATTER
A saíra-sete-cores (Tangara seledon) é uma das aves mais coloridas do sudeste brasileiro
A saíra-sete-cores (Tangara seledon) é uma das aves mais coloridas do sudeste brasileiro
Essa é uma visão de conservação mais voltada à prática, que se concentra em evitar que se percam serviços ecossistêmicos que de fato melhoram a vida das pessoas que moram no entorno. “Não tem a ver com a perda de espécies: algumas vão ser perdidas, outras, mais generalistas, aparecerão”, diz Cristina. Ela acredita que o trabalho seja um primeiro passo importante no sentido de pôr em prática a sua proposta. “Existe agora um interesse do Ministério do Meio Ambiente, além das secretarias correspondentes em alguns estados e de ONGs, mas faltava ter um valor e dizer quanto e onde preservar.” Segundo ela, o dinheiro existe, o momento é propício e os contatos que o grupo tem no governo indicam que a iniciativa é viável.
Artigo científico
BANKS-LEITE, C. et alUsing ecological thresholds to evaluate the costs and benefits of set-asides in a biodiversity hotspotScience, v. 345, n. 6200, 29 ago 2014.
Projetos
1. Conservação da biodiversidade em paisagens fragmentadas no Planalto Atlântico de São Paulo (nº 1999/05123-4); Modalidade Projeto Temático – Biota; Pesquisador responsável Jean Paul Metzger (USP); Investimento R$ 752.621,55
2. Diversidade de mamíferos em paisagens fragmentadas no planalto atlântico de São Paulo (nº 2005/56555-4); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisadora responsável Renata Pardini (USP); Investimento R$ 264.307,22

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Escassez de aves pode afetar evolução de plantas

Queda na população de espécies pode ajudar a explicar redução no tamanho de sementes de palmeira da mata atlântica
RODRIGO DE OLIVEIRA ANDRADE | Edição Online 16:47 30 de maio de 2013

 
© LINDOLFO SOUTO/SCIENCE
Tucano-de-bico-preto: aves cumprem funções ecossistêmicas importantes em relação às plantas, seja por polinizar suas flores ou por comer seus frutos e dispersar suas sementes, favorecendo a regeneração natural das florestas
Tucano-de-bico-preto: aves cumprem funções ecossistêmicas importantes em relação às plantas, por polinizar suas flores e dispersar suas sementes, favorecendo a regeneração das florestas
A queda na população de aves frugívoras de grande porte, como tucanos e arapongas, capazes de comer frutos com sementes grandes, pode estar associada à diminuição do tamanho das sementes de certas espécies de plantas da mata atlântica, e, consequentemente, a mudanças em seus padrões evolutivos. Essa relação foi observada por um grupo de pesquisadores de várias instituições brasileiras e internacionais, liderados pelo biólogo brasileiro Mauro Galetti, do Departamento de Ecologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Rio Claro. Com base em análises estatísticas, genéticas e em modelos evolutivos, eles estudaram a ecologia de uma palmeira conhecida como palmito-juçara (Euterpe edulis) – importante fonte de alimento para mais de 50 espécies de aves da mata atlântica, como papagaios, sabiás e tucanos, que se alimentam de seus frutos, além de ter importância econômica. Para isso, coletaram nove mil sementes de 22 populações da palmeira espalhadas ao longo da costa sudeste do Brasil.
Ao combinarem todos esses dados, os pesquisadores verificaram que em locais onde as aves de maior porte haviam sido extintas há mais de 50 anos, tanto pela caça predatória quanto pelo desmatamento, as populações das palmeiras produziam apenas frutos pequenos, enquanto em áreas de floresta mais conservada, e com quantidade de aves suficiente para desempenhar sua função ecológica de dispersão de sementes, as palmeiras produziam frutos de tamanhos mais variados, com sementes pequenas e grandes. Os detalhes do estudo serão publicados na edição desta sexta-feira (31) darevista Science.
Há algum tempo se sabe que as aves cumprem funções ecossistêmicas importantes em relação às plantas, seja por polinizar suas flores ou por comer seus frutos e dispersar suas sementes, favorecendo a regeneração natural das florestas. Contudo, aves de bicos menores, como os sabiás, não conseguem engolir e dispersar as sementes grandes, que geralmente caem embaixo da palmeira. Isso acaba dificultando o surgimento de novas plantas da espécie. Na ausência das aves grandes, as novas plantas acabam sendo geradas a partir de sementes pequenas e, como consequência, também produzem sementes pequenas. Com o tempo, a tendência é que somente as sementes menores sejam encontradas na natureza, em um efeito cascata induzido pela ação humana que pode desencadear mudanças ecológicas significativas.
De acordo com Galetti, a redução do tamanho das sementes dessas populações pode trazer consequências negativas, inclusive para as próprias plantas, já que sementes pequenas apresentam maiores índices de mortalidade devido ao dessecamento. “Como os modelos climáticos sugerem períodos de seca mais severa no futuro, em decorrência das mudanças do clima, uma proporção maior de sementes pequenas pode não germinar”, explica. Isso também pode resultar em um menor potencial de resposta evolutiva às mudanças climáticas.  “Acreditava-se que os efeitos da seleção natural demonstrada por Charles Darwin há mais de 100 anos poderiam levar gerações para se manifestar”, diz Galetti, “mas nossos dados mostram que o impacto humano sobre a população das aves ajuda a selecionar rapidamente as plantas com sementes pequenas”, disse.
A mata atlântica é um dos principais e mais degradados ecossistemas brasileiros, do qual restam, segundo algumas estimativas, aproximadamente 12% de sua cobertura original – mais de 80% da vegetação remanescente encontra-se altamente fragmentada em áreas com menos de 50 hectares. “Essas áreas são pequenas demais para manterem populações de grandes aves frugívoras”, afirma Galetti. A fragmentação mais intensiva da mata Atlântica teve início em 1800, com o desenvolvimento dos cultivos de café, cana-de-açúcar e a exploração madeireira.
“Infelizmente, os efeitos que documentamos em nosso trabalho não refletem uma situação isolada”, afirmou. “A rápida diminuição das populações de grandes vertebrados parece estar causando mudanças sem precedentes na trajetória evolutiva e na composição de muitas áreas tropicais”, concluiu.
No entanto, o biólogo afirma que ainda há tempo para reverter esse quadro. Segundo ele, é preciso aumentar a conectividade entre os fragmentos de floresta, o que estimularia o fluxo gênico, a fiscalização em relação à caça dessas espécies de aves e o contrabando ilegal do palmito. “Isso só pode ser feito se as autoridades aumentarem a fiscalização das unidades de conservação em parques estaduais”, disse. “O que estamos vendo, porém, é o contrário. A aprovação da última versão do Código Florestal estimulará o desmatamento. Além disso, a fiscalização em áreas que deveriam estar protegidas é inócua”, completou.
Assim, a degradação de hábitats, junto da extinção de espécies, pode causar drásticas mudanças na composição e estrutura de ecossistemas importantes, já que interações ecológicas críticas estão sendo perdidas. “Isso significa funções ecossistêmicas que podem determinar mudanças evolutivas podem estar sendo perdidas muito mais rápido do que imaginamos”. Daí a importância de se identificar quais funções estão sendo afetadas, de modo a evitar o colapso desse ecossistema.
ProjetoEfeitos de um gradiente de defaunação na herbivoria, predação e dispersão de sementes: uma perspectiva na Mata Atlântica (nº 2007/03392-6); Modalidade:Auxílio Pesquisa; Coordenador: Mauro Galetti Rodrigues/Unesp; Investimento:R$692.437,03 (Biota-FAPESP)
Artigo científico
GALETTI, Mauro. et al. Functional Extinction of Birds Drives Rapid Evolutionary Changes in Seed Size. Science. v. 340, p. 1086-1090. 2013.

A longa viagem da cigana

Origens de ave amazônica que só come folhas e “rumina” estão na África
MARCOS PIVETTA | ED. 189 | NOVEMBRO 2011

 
© GEOFF GALLICE / WIKICOMMONS
Opisthocomus hoazin, a ave cigana: antepassados teriam migrado da África para a América do Sul a bordo de pequenas balsas feitas de plantas que cruzaram o Atlântico ao sabor dos ventos e correntes marítimas
Ela voa de forma desengonçada em meio à vegetação ribeirinha da floresta amazônica, seu único hábitat contemporâneo. Ali come apenas folhas e nada mais. Tem um grande papo e o sistema digestivo lembra o de um mamífero ruminante. As fezes têm cheiro de esterco de vaca. Os taxonomistas ainda não chegaram a um acordo sobre como classificá-la. Para alguns, seria parente distante da galinha, embora a aparência e o porte tenham um quê de cuco, com o qual, segundo outros, teria um parentesco. Existe ainda quem a coloque ao lado do turaco, uma ave africana. Há mais de 230 anos, quando foi descoberta, a ave cigana (Opisthocomus hoazin), típica das bacias dos rios Amazonas e Orinoco, intriga os pesquisadores, que hoje tendem a considerá-la como único membro vivo de uma ordem de aves separada das demais, a das Opisthocomiformes. Mas a descoberta, no Brasil, da mais antiga espécie extinta de aves aparentadas da cigana — um fóssil de mais de 20 milhões de anos denominadoHoazinavis lacustris — e a confirmação de que houve, na África, ao menos uma forma de vida similar à atual ave amazônica no passado remoto forneceram pistas importantes sobre a provável origem do misterioso animal. Até agora não havia registro algum de aves dessa ordem fora da América do Sul.
Os dois achados foram divulgados num estudo publicado neste mês na revista científica alemã Naturwissenschaften por paleontólogos e ornitólogos do Brasil, Alemanha e França. De acordo com os pesquisadores, a análise de todo o material fóssil sugere que as origens da ave sul-americana estão na África, embora a espécie mais antiga relacionada com a cigana tenha sido encontrada no estado de São Paulo. “Apesar de mais novos, os fósseis africanos apresentam características anatômicas mais primitivas do que as presentes no nosso material”, explica o paleontólogo Herculano Alvarenga, fundador e diretor do Museu de História Natural de Taubaté, no interior paulista, um dos autores do estudo (veja vídeo). Se essa linha de raciocínio estiver correta, é razoável supor que deve haver fósseis mais velhos do que o da H. lacustris em alguma parte daquele continente. O problema é que eles ainda não foram encontrados e nada garante que um dia o sejam.
Mais surpreendente do que as possíveis raízes africanas da cigana amazônica é a forma como os antepassados dessa ave teriam feito, há algumas dezenas de milhões de anos, a longa migração entre a África e a América do Sul. Nessa época não havia mais conexão terrestre entre os dois continentes. África e América do Sul já tinham se separado havia muito tempo e o Atlântico, embora mais estreito que hoje, era a barreira a ser vencida numa travessia intercontinental. Bater asas ao longo de uma jornada de milhares de quilômetros e atravessar o oceano pelo ar era uma tarefa impossível para os antepassados da ave sul-americana, que pareciam apresentar capacidades tão limitadas de voo quanto as da cigana. Por exclusão, o único jeito era vir por mar. “Essas aves antigas devem ter cruzado o Atlântico a bordo de balsas formadas por restos de plantas, que funcionaram como pequenas ilhas flutuantes a ligar os dois continentes”, afirma Alvarenga, especialista em aves fósseis.
Ao sabor dos ventos e correntesA hipótese pode parecer fantasiosa para um leigo no assunto, mas há evidências científicas capazes de sustentá-la. “Todas as reconstituições de como eram os ventos e as correntes marítimas naquela época favorecem a dispersão de espécies da África para a América do Sul, e não no sentido contrário”, diz o ornitólogo Gerald Mayr, do Museu Senckenberg, em Frankfurt, outro autor do artigo. Em aves com limitada capacidade de voo esse tipo de travessia intercontinental, a bordo de algum tipo de jangada vegetal que teria navegado o Atlântico ao sabor dos ventos e das correntes, nunca foi documentado. Mas outros animais possivelmente vieram para cá dessa forma. “Essa é a ideia mais aceita sobre como se deu a migração dos roedores caviomorfos e dos primatas platirrinos da África para a América do Sul”, comenta a paleontóloga Cécile Mourer-Chauviré, da Universidade Claude Bernard – Lyon 1, outro pesquisador que assina o trabalho científico. Os roedores caviomorfos incluem animais típicos da América do Sul, como a capivara e a paca, e os primatas platirrinos abrangem os chamados macacos do Novo Mundo, encontrados apenas nas Américas.
© HERCULANO ALVARENGA / CÉCILE MOURER-CHAUVIRÉ
Filhote de cigana: ave voa de forma desengonçada e tem papo de “ruminante”
A formulação da nova teoria que tenta explicar as origens da ave sul-americana só foi possível graças à descoberta em solo brasileiro da nova espécie extinta e ao trabalho de revisão do pouco material fóssil relacionado às Opisthocomiformes  depositado nos museus internacionais. Essa dupla abordagem permitiu aos pesquisadores fazer algo que até agora não tinha sido possível: traçar um cenário de relações evolutivas entre seres do passado e a única forma viva dessa ordem de aves, a cigana.
Mais velha das espécies extintas das Opisthocomiformes, a H. lacustris habitou entre 22 e 24 milhões de anos a Formação Tremembé, na região de Taubaté, rica em fósseis de animais. Três partes do esqueleto de um único exemplar da ave — um úmero completo (principal osso da asa), um pedaço da escápula e outro do coracoide (osso da cintura) — foram encontrados por Alvarenga em sedimentos de um antigo lago (daí o nome lacustris) em 2008. “A morfologia desses três ossos associados não deixa dúvidas de que se tratava de uma ave relacionada com a cigana”, diz o paleontólogo paulista. O estudo dos fragmentos do esqueleto também revelou que a antiga ave deveria ter um grande papo, no qual possivelmente bactérias se encarregavam de degradar parte de sua dieta antes de o alimento chegar ao estômago. Tudo muito similar à atual cigana. A descrição do fóssil foi feita pelo brasileiro e seus colegas europeus no paper daNaturwissenschaften.
Osso da sorteAntes da H. lacustris, os restos de apenas um único exemplar de outra espécie de ave extinta aparentemente relacionada com a cigana haviam sido descobertos no final dos anos 1990 na América do Sul. Trata-se de um fragmento de um crânio da Hoazinoides magdalenae, animal que teria vivido na Formação Villavieja a oeste dos Andes, um território hoje situado na Colômbia, entre 11,8 e 13,5 milhões de anos atrás. Embora haja escasso material ósseo para fazer uma comparação detalhada, a H. magdalenaeparece ser muito similar à atual cigana. Seu porte apenas era um pouco maior do que o de sua parente amazônica contemporânea. É interessante notar que as duas espécies extintas de Opisthocomiformes encontradas na América do Sul ocuparam partes do continente que se situam fora da Amazônia, hoje o hábitat da cigana — um indício de que as formas mais antigas dessa ave podiam se distribuir por uma área geográfica bem maior.
A reclassificação de uma espécie extinta de ave africana, a Namibiavis senutae, dentro da ordem filogenética da cigana expandiu ainda mais os antigos domínios desse grupo de seres alados, papo grande e dieta vegetariana. Descritos pela primeira vez no início dos anos 2000, os fósseis da espécie foram encontrados na Namíbia e, originalmente, situados como membros de um grupo extinto de aves daquele continente, as Idiornithidae. No entanto, as análises feitas por Alvarenga e seus colegas europeus mudaram essa classificação e colocam a N. senutae, que viveu há uns 17 milhões de anos, dentro das Opisthocomiformes. “Os fósseis africanos são mais diferentes da moderna cigana do que o da H. lacustris encontrado no Brasil”, afirma Mayr. “Mas eles ainda se parecem muito com a ave atual.” Entre as distinções anatômicas mais primitivas da extinta espécie africana, a francesa Cécile destaca o fato de que os ossos coracoide e  fúrcula — este último constituído pelas duas clavículas ligadas ao esterno, uma estrutura do esqueleto das aves vulgarmente conhecida como “osso da sorte” —  ainda não se encontram fundidos, como se fossem uma única estrutura. Nos exemplares adultos da moderna cigana a fusão desses e de outros ossos já se completou. Foram justamente esses traços mais ancestrais dos fósseis da N. senutae que ampararam a formulação da hipótese da origem africana das aves Opisthocomiformes.
Para o biólogo Luís Fábio Silveira, curador das coleções ornitológicas do Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo (USP), a nova teoria que situa o berço dos ancestrais da cigana fora da América do Sul deve ser levada a sério e testada à medida que novos fósseis forem descobertos. “O estudo é muito interessante e benfeito”, afirma Silveira, que não participou do trabalho. “A origem da cigana e, consequentemente, suas relações de parentesco estão entre os maiores problemas da sistemática (classificação) das aves. Ninguém sabe se essa ave é mais próxima das galinhas, dos cucos ou dos turacos.” Essa questão não foi resolvida pelo novo estudo. No entanto, se a origem dessa ordem de aves for mesmo a África, o trabalho dos paleontólogos e ornitólogos talvez tenha de voltar seu foco prioritariamente para aquele continente, e não tanto para a América do Sul, onde a cigana vive nos dias de hoje.
Artigo científicoMAYR, G.; Alvarenga, H.; Mourer-Chauviré, C.  Out of Africa: Fossils shed light on the origin of the hoatzin, an iconic Neotropic birdNaturwissenschaften. v. 98, n. 11, p. 961-66. nov. 2011