Cascata trófica
Em uma floresta tropical hipotética imaginada por David
Quammen existe certo conjunto de seres vivos. O conjunto completo inclui uma
espécie de porco do mato, uma rã, um mosquito, um parasita
microbiano, uma espécie de macaco,
uma de mangueira, uma formiga cortadeira, um lagarto, uma vespa e uma espécie de coruja.
A coruja é anã adaptada a nidificar em pequenas cavidades. Essas espécies
interagem entre si de maneiras diversas e incalculáveis, ainda que algumas das
interações possam ser observadas. O porco do mato fuça as margens dos riachos
em busca de comida e os cavoucos acabam virando poças de lama. Tanto a rã como
o mosquito põem seus ovos nesses pequenos charcos. À medida que os girinos
eclodem e crescem, passam a se alimentar das larvas do mosquito. O mosquito,
quando adulto, transporta na sua saliva o parasita microbiano, e este provoca
doenças no macaco. Felizmente para o macaco a população de mosquitos é pequena,
de modo que a incidência de doenças permanece baixa. Os macacos comem uma
grande variedade de matéria vegetal, mas preferem tudo que for suculento e
doce. Sempre que as mangueiras dão fruto, os macacos se refestelam. As mangas
são pequenas o suficiente para que, às vezes, um macaco engula – as por inteiro
– e, nesse caso, as sementes lenhosas da fruta percorrem todo seu trato
digestivo-intestinal. A formiga – cortadeira usa a mesma árvore para obter
forragem. Na verdade ela é tão especializada que depende apenas dessa árvore e
nenhuma outra. O lagarto é um pouco menos especializado e se alimenta de
formigas, moscas e uma ou outra vespa. As vespas, por sua vez, constroem seus
ninhos em pequenos buracos de árvores cavados originalmente por pica paus. A
coruja anã a maneira da vespa, também, faz ninhos em buracos abandonados pelos
pica paus. Perturbemos agora esse ecossistema com uma única extinção e
postulemos o que poderá acontecer. Digamos que a população de porcos do mato
seja exterminada por caçadores.
Sem os porcos do mato, os riachos passam a correr límpidos e
cristalinos e as margens permanecem imaculadas. Passando um tempo, todas as
poças de lama secam. Com isso, a rã, privada de lugar para pôr ovos, segue o
mesmo caminho do porco do mato e se extingue. O mosquito, porém, menos
especializado que a rã, sobrevive. Adapta-se a ausência dos esponjadouros do
porco do mato e passa a por seus ovos em pequeninas poças de água de chuva que
acumulam em folhas caídas. Na realidade, o mosquito consegue muito mais do que
apenas sobreviver; livre da predação dos girinos, sua população dispara.
Enxames de mosquitos famintos varrem a floresta, atormentando todos os animais
de sangue quente e infectando todos os macacos com a doença microbiana. Esse
surto de doença é o golpe de misericórdia para o macaco, cuja população (como a
dos porcos do mato) já havia sido reduzida pela caça. E o macaco também é
extinto. Os mosquitos mal percebem o seu sumiço e transferem os ataques
suga-sangue para variedades de aves e pequenos mamíferos. As mangueiras, no
entanto, sofrem com o desaparecimento do macaco, um parceiro insubstituível.
Sem os macacos para engolir as frutas, processar as sementes por digestão e
defecar as sementes no chão junto com pequeninas doses de fertilizante, as
árvores não conseguem se reproduzir. Assim, nos anos seguintes à extinção do
macaco, nenhuma árvore nova brota. Passados dois séculos de irremediável
esterilidade, dois séculos sem progênie, a última das velhas mangueiras morre.
Nosso placar até o momento: porco do mato extinto, rã
extinta, macaco extinto, árvore extinta. Os mosquitos vicejam. O parasita
microbiano, como a árvore, teve o mesmo destino que o macaco – era insuficientemente
versátil para estabelecer novos reservatórios de infecção em outros animais picados
pelo mosquito.
Os efeitos em cascata
prosseguem. A formiga cortadeira, privada de sua árvore favorita, também se
extingue. Na ausência da formiga a população de lagartos despenca. O declínio
dos lagartos é uma dádiva para população de vespas que deixa de ser perseguida
por eles. Ainda que alguns poucos lagartos continuem a predar algumas vespas desatentas,
as quantidades são mínimas e as vespas se tornam vastamente numerosas. Toma
para si todos os buracos de pica paus abandonados, constroem mais e mais
ninhos, criam vespinhas – bebês produzem mais e mais vespas e tomam para si
mais e mais buracos. A coruja- anã sai perdendo nessa competição. Em comparação
com o fervor territorial da vespa, a coruja é humilde. Mas não herdará a terra.
Sem acesso aos buracos onde poderia se reproduzir, ela se extingue.
Assim, o ecossistema é transformado por cascatas tróficas.