quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Cascata trófica

Em uma floresta tropical hipotética imaginada por David Quammen existe certo conjunto de seres vivos. O conjunto completo inclui uma espécie de porco do mato, uma rã, um mosquito, um parasita microbiano, uma espécie de macaco, uma de mangueira, uma formiga cortadeira, um lagarto, uma vespa e uma espécie de coruja. A coruja é anã adaptada a nidificar em pequenas cavidades. Essas espécies interagem entre si de maneiras diversas e incalculáveis, ainda que algumas das interações possam ser observadas. O porco do mato fuça as margens dos riachos em busca de comida e os cavoucos acabam virando poças de lama. Tanto a rã como o mosquito põem seus ovos nesses pequenos charcos. À medida que os girinos eclodem e crescem, passam a se alimentar das larvas do mosquito. O mosquito, quando adulto, transporta na sua saliva o parasita microbiano, e este provoca doenças no macaco. Felizmente para o macaco a população de mosquitos é pequena, de modo que a incidência de doenças permanece baixa. Os macacos comem uma grande variedade de matéria vegetal, mas preferem tudo que for suculento e doce. Sempre que as mangueiras dão fruto, os macacos se refestelam. As mangas são pequenas o suficiente para que, às vezes, um macaco engula – as por inteiro – e, nesse caso, as sementes lenhosas da fruta percorrem todo seu trato digestivo-intestinal. A formiga – cortadeira usa a mesma árvore para obter forragem. Na verdade ela é tão especializada que depende apenas dessa árvore e nenhuma outra. O lagarto é um pouco menos especializado e se alimenta de formigas, moscas e uma ou outra vespa. As vespas, por sua vez, constroem seus ninhos em pequenos buracos de árvores cavados originalmente por pica paus. A coruja anã a maneira da vespa, também, faz ninhos em buracos abandonados pelos pica paus. Perturbemos agora esse ecossistema com uma única extinção e postulemos o que poderá acontecer. Digamos que a população de porcos do mato seja exterminada por caçadores.
Sem os porcos do mato, os riachos passam a correr límpidos e cristalinos e as margens permanecem imaculadas. Passando um tempo, todas as poças de lama secam. Com isso, a rã, privada de lugar para pôr ovos, segue o mesmo caminho do porco do mato e se extingue. O mosquito, porém, menos especializado que a rã, sobrevive. Adapta-se a ausência dos esponjadouros do porco do mato e passa a por seus ovos em pequeninas poças de água de chuva que acumulam em folhas caídas. Na realidade, o mosquito consegue muito mais do que apenas sobreviver; livre da predação dos girinos, sua população dispara. Enxames de mosquitos famintos varrem a floresta, atormentando todos os animais de sangue quente e infectando todos os macacos com a doença microbiana. Esse surto de doença é o golpe de misericórdia para o macaco, cuja população (como a dos porcos do mato) já havia sido reduzida pela caça. E o macaco também é extinto. Os mosquitos mal percebem o seu sumiço e transferem os ataques suga-sangue para variedades de aves e pequenos mamíferos. As mangueiras, no entanto, sofrem com o desaparecimento do macaco, um parceiro insubstituível. Sem os macacos para engolir as frutas, processar as sementes por digestão e defecar as sementes no chão junto com pequeninas doses de fertilizante, as árvores não conseguem se reproduzir. Assim, nos anos seguintes à extinção do macaco, nenhuma árvore nova brota. Passados dois séculos de irremediável esterilidade, dois séculos sem progênie, a última das velhas mangueiras morre.
Nosso placar até o momento: porco do mato extinto, rã extinta, macaco extinto, árvore extinta. Os mosquitos vicejam. O parasita microbiano, como a árvore, teve o mesmo destino que o macaco – era insuficientemente versátil para estabelecer novos reservatórios de infecção em outros animais picados pelo mosquito.
 Os efeitos em cascata prosseguem. A formiga cortadeira, privada de sua árvore favorita, também se extingue. Na ausência da formiga a população de lagartos despenca. O declínio dos lagartos é uma dádiva para população de vespas que deixa de ser perseguida por eles. Ainda que alguns poucos lagartos continuem a predar algumas vespas desatentas, as quantidades são mínimas e as vespas se tornam vastamente numerosas. Toma para si todos os buracos de pica paus abandonados, constroem mais e mais ninhos, criam vespinhas – bebês produzem mais e mais vespas e tomam para si mais e mais buracos. A coruja- anã sai perdendo nessa competição. Em comparação com o fervor territorial da vespa, a coruja é humilde. Mas não herdará a terra. Sem acesso aos buracos onde poderia se reproduzir, ela se extingue.

Assim, o ecossistema é transformado por cascatas tróficas. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

A extinção do pombo passageiro.

Segundo o ecólogo Jared Diamond (Rosetta Stone) 171 espécies de aves extinguiram na história recente do homem. A grande maioria são espécies insulares, pois alterações ambientais em ilhas causam um desequilíbrio ambiental muito mais pronunciado que em área continental, porém um caso recente do pombo passageiro (Ectopistes migratorius) espécie continental chama atenção. E o motivo disto esta descrito por David Quammen em seu livro “O canto do dodô”
“Há apenas dois séculos, os pombos passageiros eram quase inimaginavelmente numerosos. Habitavam a metade oriental da América do Norte e sua área de uso ia desde as grandes florestas decíduas do litoral de Massachusetts até as grandes planícies a oeste, e do norte do Mississipi até a Nova Escócia, no Canadá. Um curto espaço de tempo sua população desabou de algo em torno de 3 bilhões para zero. Enquanto prosperou foi um estupendo sucesso biológico. (...)
Os pombos passageiros eram criaturas fantasticamente gregárias. Temos certeza disso, embora não saibamos muito sobre seus hábitos. A evolução os compelira a uma estratégia de exagerada convivência. Eles encontravam conforto e segurança contra ataques surpresa de predadores e condições aprazíveis de acasalamento dentro das colônias tão gigantescas e tão aglomeradas que seriam intoleráveis para outras espécies. Alimentavam-se de plantas que ocorriam em grandes concentrações, mas eram distribuídas de maneira não uniforme ao longo de sua área de uso, em clusters não contínuos no tempo e no espaço. Uma farta provisão de frutos de Carvalho, frutos de Faia e outros tipos de castanhas eram importantes, mas eles também dependiam de chokeberries – pseudofruto de arbusto do gênero Aronia -, amoras, sabugos – fruto do sabugueiro do Canadá – sementes de Bordos e Elmos, (...).
As aves viajavam em revoadas imensas, que colocavam milhões de pares de olhos de atalaia atrás de fontes copiosas de comida. Aninhavam em gigantescos “viveiros” que se estendiam por até quinhentos quilômetros quadrados. Quando o grupo alçava voo, em busca de alimento ou lugar para descansar, o céu literalmente escurecia.
Na Virgínia, por volta de 1614, um homem referiu-se aos pombos “Além de qualquer número ou imaginação”, acrescentando que “eu mesmo já presenciei revoadas que demoraram três ou quatro horas para passar, tão espessas que obscureciam o céu” Um imigrante holandês em Manhattan escreveu em 1625: “As aves mais comuns são os pombos silvestres; são tão numerosos que não deixam passar a luz do sol.” Na Pensilvânia, um poema de 1729 incluía os versos.” No outono, aqui voam grandes bandos de pombos / Tão numerosos que escurecem todo o céu”. Essa imagem é repetida com tanta frequência nos registros históricos que parece uma fórmula passada de geração em geração, até uma testemunha ocular lhe confere a força da realidade observada. Um explorador francês chamado Bossu, ao chagar a Illinois por volta de 1760, ficou impressionado com a visão de “nuvens de pombos, uma espécie de pombo silvestre ou do mato. Algo que pode parecer incrível é que o sol chega a ser obscurecido por eles”. Bossu também relatou que um caçador era capaz de abater oitenta aves com um único tiro. Por volta de 1810, o ornitólogo Alexander Wilson fez uma estimativa meticulosa, mas estonteante de que havia 2.230.272.000aves num único bando. Consumo diário de alimento: 600 mil metros cúbicos de glandes. (Se Wilson houvesse arredondado para baixo e dissesse “2 bilhões de pássaros”, todos suporiam que se tratava de um flagrante exagero.) Mais ou menos na mesma época, John James Audubon descreveu uma revoada que avistou cruzando, cruzando, cruzando, cruzando sem parar os céus de Kentucky. “Os pombos continuam roubando-me a luz do sol por três dias inteiros”, escreveu.
O declínio de abundância para raridade parece ter ocorrido num piscar de olhos, talvez durante 1880. No inicio da década, o Ectopistes migratorius ainda aninhava em conclaves de vários milhões de pássaros, mas em 1888 um bando de apenas 175 aves já se tornara digno de nota e os céus nunca mais escureceram com pombos passageiros. O ultimo individuo silvestre comprovado foi morto a tiros em Sargents, Ohio, em 24 de março de 1900. Depois disso. A espécie só foi encontrada em zoológicos. O ultimo pombo passageiro conhecido (afamado na história das extinções e agraciado com o nome próprio, Martha) sobreviveu até 1914 no zoológico de Cincinnati. (...)
O livro de Schorger, The passenger pigeon: its natural history and extincion (O pombo passageiro: sua historia natural e extinção), um tratado historicamente completo ( mas hoje cientificamente desatualizado) publicado em 1955 (...)
O mesmo gregarismo que ajudava os pombos passageiros a se proteger dos predadores naturais também os tornou particularmente vulneráveis aos seres humanos. Seu instinto de coesão social era tão forte que milhares das aves podiam ser mortas antes que as demais se assustassem. O massacre chegou ao ápice depois da guerra da Secessão, quando falanges de caçadores profissionais saíram à cata dos grandes bandos. Eles foram auxiliados pelo telegrafo (que permitia transmitir informações sobre locais de nidificação) e pelas ferrovias (para transporte rápido das aves abatidas) Os habitantes locais, não apenas os homens, mas famílias inteiras, também participavam. As aves eram recolhidas como maças num pomar e centenas, centenas acabavam apodrecendo no chão. “Caça” é na realidade uma palavra nobre demais para uma carnificina tão estupida e metódica; embora colheita possa parecer um eufemismo quando aplicado a uma espécie animal, talvez seja um termo mais preciso. A colheita foi realizada com redes, alçapões, fumigação sulfúrica, porretes, varas compridas e, é claro, armas de fogo. Uma família de Massachusetts, usando varas para derrubar as aves do poleiro, matou 1200 numa noite. Algumas arapucas eram capazes de prender mil aves por vez. Barris cheios de pombos salgados ou congelados eram enviados para cidades do leste, onde cada ave chegava a ser vendida por menos de cinco centavos de dólar. Quando havia superabundância de oferta nos mercados urbanos, o preço caia ainda mais e os pombos passageiros eram dados de graça ou transformados em ração para porcos.
Em 1878, pelo menos 1,1 milhão de aves mortas numa área de nidificação perto de Petoskey, Michigan, foram despachados para o mercado. Na década 1930, Etta S. Wilson, já idosa, recordou dos eventos que testemunhara em menina numa outra área de nidificação em Michigan: (...).
E a história vivida por Etta é contada a seguir no livro, no entanto o trecho transcrito já nos dá ideia do que significa a extinção.